LUTA CONTRA A MORTE

          Poucas chances temos de fazer afirmações absolutas. Se nos pusermos a avaliar terminaremos por concluir que mesmo estas poucas chances não são na verdade absolutas. Porém, em qualquer circunstância a certeza da morte nunca o deixará de ser. Permanecerá sempre como uma afirmativa total, da qual nenhum questionamento escapa. Nem mesmo as religiões de morte ou seus pensadores conseguem escapar desta certeza. As explicações sobre vidas anteriores ou posteriores não alcançam o contraditório. Esta vida acaba, morre. As explicações sobre continuidade posterior não eliminam o fato de que agora, neste formato, neste lugar, nestes parâmetros, a morte realmente ocorre. Ainda outras religiões, que não se voltam para os mortos, conformam-se com a certeza bíblica de que “do pó viestes, ao pó retornarás”. Além disto todas as explicações religiosas satisfazem a critérios de crenças apenas. À luz de critérios científicos, a questão dispensa aprofundamentos: todos morreremos!

          Parece absurdo e filósofos, por exemplo Camus, perguntou-se: se temos certeza da morte e se nada podemos fazer para evitá-la, porque não morremos já, porque continuarmos vivos? Ele próprio responde e tantas outras respostas existem. Biologicamente encontramos vantagens na morte. Se não é boa para o indivíduo, é boa para a espécie. É boa para a vida. As espécies melhoram-se e evoluem a cada nascimento. A morte que põe fim a um indivíduo, aperfeiçoa a espécie. Se de fato fôssemos imortais, eternos, não necessitaríamos de nascimentos. Com seres vivos eternos, a natureza não teria necessidade de reproduzir. (Sem considerar ainda que se fôssemos eternos, seriam desnecessários os nascimentos, pois não haveria espaço no planeta para tantos seres vivos. Sem os nascimentos, as uniões conjugais perderiam o sentido ou talvez devessem encontrar um outro, que só teria sentido se a união sexual permanecesse capaz de produzir intenso prazer, tão intenso ao ponto de prescindir da reprodução, pois de outra forma, tais uniões seriam menos importantes que as grupais. Casais bem estabelecidos, mas que não conseguemos ter filhos, tendem a abandonar a vida sexual. Nesta linha encontraremos uma intersecção entre o sexo e a morte, mas isto é assunto para o livro que estamos escrevendo e não para este pequeno texto).

          É com a morte de um, que a continuidade reproduz um novo. Este novo é melhor. Se recusarmos tal argumento deveremos retomar a leitura de Darwin e outros. Nós mesmos, homo sapiens não existiríamos e não estaríamos aqui com estas indagações se os anteriores não tivessem morrido. Somos um aperfeiçoamento.

          Há apologistas da morte. Porém embora concordemos com sua necessidade lógica, não a aceitamos, não gostamos de morrer, não gostamos da proximidade da morte, não gostamos de perder alguém para a morte. Ficamos indignados com a morte de um ente querido e também com a morte de um ente qualquer. Incomoda-nos a morte de um animal doméstico, de animais selvagens, de plantas, de rios e de qualquer outra coisa que associemos à morte. Lutamos pela vida. Neste sentido criamos ciências como a medicina e outras e através delas lutamos pela vida, contra a morte. A espécie humana vem especializando-se desde sempre em prolongar a vida. Procuramos dominar a natureza, procuramos nos entender, nos conhecer melhor e com isto vivermos mais. A medicina e as ciências biológicas em geral expressam melhor o esforço humano em evitar a morte. A morte do outro é a reafirmação constantemente repetida de nossa própria morte. Evitando a morte do outro pensamos aprender a evitar a nossa própria morte. A tecnologia hoje disponível para os mais espalhafatosos tratamentos fazem-nos pensar que um dia poderemos sempre driblar a morte e sairmos vivos de todas as ciladas biológicas de nossa existência. É possível sonhar com células que não morrerão, com órgãos perfeitos e com vida eterna, aqui mesmo, na Terra. Toda a parafernália para a manutenção da vida indicam nosso horror à morte, nossa necessidade de evitá-la.CASAMENTO

          O modelo de casamento hoje existente não é o primeiro que tivemos. Não é o último também. Nossa espécie necessita se reproduzir para cumprir a intenção da natureza. Continuaremos a nos unir homens e mulheres e a reproduzirmos. Teremos filhos cada vez mais maravilhosos. Esta afirmação acima pode ser considerada definitiva. Porém, não saberemos como serão estas uniões, que formato terão, nem quanto tempo durarão. Observamos que nas sociedades em que as mulheres não são financeiramente dependentes dos homens, os casamentos tem menor duração. Além da independência financeira outros fatores sociais contribuem para que o tempo em que machos e fêmeas humanos permanecerão juntos diminua. Por exemplo, a sociedade se instrumenta cada vez melhor para cuidar das crianças e de sua formação até a idade adulta. Embora o papel da família não seja dispensável ele é cada vez menor para a formação dos filhotes humanos. Nossas crianças são protegidas e cuidadas cada vez mais pela sociedade e esta mesma sociedade ao mesmo tempo diminue o poder dos pais sobre os filhos e talvez também sua importância. A organização social que passamos a ter e que temos buscado aprimorar aumenta nos casais o sentimento de que esta união não é mais necessariamente duradoura e que deve durar efemeramente o tempo que dura um prazer. O casamento é cada vez mais visto como um evento que tem seu começo, seu meio e seu final. A idéia de eternidade não se conjuga mais com a idéia da duração da união. A separação é apontada regularmente como inevitável, como necessária e em muitas vêzes é avaliada já no planejamento do casamento. Casais dizem que vão se casar e que se separarão “se não der certo”. Esta expressão costuma indicar que a dedicação, o empenho, o esforço, a luta e a perseverança serão substituídos por uma passividade quase irresponsável, pois a chance de dar certo depende tanto da escolha consciente e responsável quanto da dedicação, empenho e etc em “dar certo”. Casais falam enfim da separação como algo comum, simples ou bom.. E, paradoxalmente, até mesmo aqueles casais que lutam contra a separação pronunciam-na saborosamente entre suas terríveis dores, como se esta fosse uma ameaça apenas ao cônjuge e não a si próprios também.

          Um cônjuge ameaça o outro com a separação querendo dizer: “Se você continuar a me tratar assim, eu te punirei com a dor maior que um ser humano pode enfrentar, a separação”. Porém deveria perceber que só faz esta ameaça porque já pressente o quanto dói e ao invés de propor a dor ao outro deveria fazer com que nenhum dos dois a sentisse, dizendo algo assim: “Se você e eu nos tratarmos assim, seremos punidos com a maior dor que um ser humano conhece, a separação. Evitemos isto, portanto, para que possamos gozar de felicidade”.

          Assim fariam como faz toda a ciência e toda a evolução humana, lutariam pela vida, pela longevidade e evitariam a morte. Infelizmente isto é apenas uma idealização quando observamos o que de fato se passa em nossos dias atuais.

          Sabemos hoje que as separações existem. Supomos que amanhã as uniões serão mais breves e o conceito de separação será diferente. Em outras épocas a separação marcava os separados e seus filhos mais negativamente do que aquela doença tão ruim que até se evitava pronunciar o nome. Hoje o câncer continua impactando as pessoas, mas as separações conjugais nem tanto.SEPARAÇÃO CONJUGAL E MORTE

          Apesar destas mudanças frente à morte já conhecida e frente às separações já acontecidas, a aproximação da morte ou da separação produz na pessoa ameaçada e nos que a circundam as experiências mais dolorosas que o ser humano pode enfrentar. Morte ou separação conjugal doem tanto que todo esforço se faz para evitá-los. Ninguém sabe o quanto dói uma cólica renal até que se tenha uma. As mulheres repetem exaustivamente que nenhum homem aguentaria as dores de um parto normal. Se você nunca teve uma dor de dente de madrugada não conseguirá fazer idéia do tamanho do sofrimento. As mortes acontecem em todas as famílias e em todas as vizinhanças. Todos nós conseguimos imaginar a dor dos familiares e também a do “morrendo” por se ver obrigado a deixar a luta e a maravilha da vida. É possível assistir e participar dos sofrimentos dos envolvidos em desgraça tão grande como a morte. Todos reconhecem que ela produzirá imensa perda não só aos que estão afetivamente ligados ao morto, mas a toda sociedade e a toda humanidade. Faz parte das fantasias humanas a invenção de um aparelho que permita a uma pessoa ser congelada e anos depois revivida. Ora, o que se quer com isto? Certamente deseja-se estar vivo em um futuro mais distante, podendo ver o aconteceu com a humanidade, o que se passou naquele tempo em que de outra forma se estaria morto e nada se veria. Quem já leu a bíblia sabe que a Adão e Eva foram proibidos dois frutos e o que não comeram foi o da vida eterna. De onde a humanidade tirou esta suposição? Certamente supomos que nós mesmos somos culpados de não sermos eternos, que se tivessemos desobedecido direito, teríamos comido o outro fruto também. Acusamo-nos por não vivermos eternamente.

          Alguém tem dúvida de que histórias ou fantasias assim, revelam-nos o quanto tememos e evitamos a morte?

          Se pudéssemos ao mesmo tempo morrer e também nos separarmos do cônjuge amado, poderíamos comparar estas duas dores e dizermos qual delas dói mais. Não poderemos dizer com a certeza de quem compara, mas podemos buscar algumas evidências.

          Em meu trabalho com casais nestes 30 anos de clínica, tenho observado que uma grande maioria de casais que concluíram que seu casamento acabou, que não tinha mais sentido viverem juntos, que as feridas eram grandes demais e que estiveram cara a cara com a separação, recuou. Recuaram da dor maior.

          Separar-se é como fazer a eutanásia do casamento. Casamento ruim é como gripe e se fica grave é como pneumonia e a separação em casos assim é a eutanásia do doente de pneumonia. Sempre sobra a esperança de que por mais grave que a doença seja, o paciente se recupere e volte a viver uma vida sadia e saudável. Mesmo com pacientes mais graves e que ao se recuperarem passam a viver em leito ou em cadeiras de rodas, a recuperação é mais desejável do que a morte.

          Todos sabemos de casos em que o enfermo grave pediu sua morte. A biografia de Freud deixa claro que ele pediu ao seu médico a dose letal para abreviar a dor. Todos sabemos de pessoas que em tragédias pulam do alto de edifícios para se livrarem da dor imensa do fogo do incêndio. É óbvio que não desejavam morrer, queriam apenas se livrar do imenso sofrimento. Sabemos de vários casos e um famoso é o do cantor Ronnie Von, que apesar de ter desejado morrer para não prosseguir com a imensa dor que sentia, ao se ver curado, passou a amar e a valorizar a vida muito mais do que valorizava antes. Expressões como “eu nasci de novo”, ou “eu estou vivo por milagre”, são comuns em pessoas que tendo estado próximas o suficiente da morte, passaram a reconhecer o quanto é melhor a vida.

          Voltemos aos nossos casais. Estando em situações de extremo sofrimento conjugal e isto, o quanto é extremo, varia de casal para casal, muitos casais preferem a separação à dor conjugal. Uma vez inicada a separação descobrem que ela é muito mais dolorida, muito mais dolorosa do que a dor que pretendiam evitar. É por isto que sabiamente recuam. Mas não são muito sábios também, pois deveriam buscar a felicidade, porém mal se livram da dor máxima e já voltam à dor anteriormente conhecida, a do casamento infeliz. Infelizmente e para as críticas de muitos terapêutas conjugais, eu penso que a terapia é bem sucedida quando consegue mostrar o caminho de volta à felicidade. Muitos psicólogos respeitáveis por seu conhecimento aceitam a boa separação, em minhas palavras a boa eutanásia como sucesso terapêutico também. Admito que é melhor uma separação saudável a uma vida infeliz, mas afirmo que é melhor um casal feliz juntos, do que uma boa separação. Infelizmente em minha vida profissional em algumas vêzes fui obrigado a me contentar com separações que foram menos graves do que seriam sem a psicoterapia.SEPARAÇÃO CONJUGAL É PIOR DO QUE A MORTE

          Separação Conjugal é pior do que a morte. A morte deixa rastros por pouco tempo e tende a ser aceita como evento natural. Sua imensa dor se esvái e o morto logo é idealizado pelos seus parentes e amigos. Do morto apaga-se na lembrança os defeitos e intensificam-se as qualidades. É comum dizerem que “depois de morto virou santo”, quando se deseja deixar claro o exagero sobre as qualidades do morto.

          Casais com filhos nunca se separam por completo e filhos, netos, imóveis e outro bens e pessoas permanecem durante toda a vida como que exigindo a solução correta para os problemas conjugais. O casal separado continuará se relacionando e ambos terão em suas mãos um novo arsenal bélico para continuarem a se atacar. Seu relacionamento que era ruim e não deveria ser, agora passa a ser oficialmente ruim. Ex-marido não acredita que deva, tenha a obrigação de tratar bem a ex-esposa, e aí trata-a mal, sem culpa. Vigia-lhe o comportamento pessoal e familiar como quem vigia a própria honra e os filhos são seu argumento principal, sua justificativa. Ex-esposa não faz por menos. Se ela tem dificuldades financeiras e o ex-marido não, ela busca encontrar nele uma justificativa para a sua falta de dinheiro e neste momento abandona os argumentos da emancipação feminina, adota os argumentos das obrigações paternas e exige-lhe o dinheiro que falta e novamente os filhos são seu argumento principal, sua justificativa. Filhos passam a fazer parte do arsenal bélico dos ex.

          Sendo assim, continuam unidos, não se separam. Pós separação uniram-se em guerra, e esta guerra pós separação é a forma neurótica que encontram para secretamente dizerem-se que continuam juntos. É como se após a morte alguém colocasse o defunto na sala, em um sofá qualquer e com ele conversasse todos os dias. Mantendo o defunto na sentado na sala é como ele não tivesse morrido. Mantendo a briga pós separação conjugal é como se não tivessem separado.

          Matar o cônjuge. Esta idéia é antiga e é praticada por homens e mulheres. É a eutanásia não solicitada. Quando minha mãe estava em seu leito pré morte, o médico pediu-me autorização para injetar-lhe um sedativo e suspender a terapêutica. Explicou-me que sua morte seria inevitável e que esta abreviação faria bem a ela. Eu e meus irmãos não autorizamos e solicitei ao médico que mantivesse o tratamento como se fosse ocorrer um milagre. Ela viveu mais alguns dias. Achamos que foi melhor. Autorizar a morte em situações como esta é eutanásia. Antecipa-se a morte para acabar com um sofrimento maior.

          Casais que não suportam a dor da separação já próxima, pensam na morte do outro e na própria morte mais frequentemente do que se imagina. Supondo que não conseguirão viver sem o cônjuge, que sua vida não mais terá sentido, e ainda mais, supondo que a dor da morte é menor do que a dor da separação, pensam na morte do cônjuge. Supondo que sem o cônjuge já morto, sua vida será pior e sem sentido, pensam em suicídio após o homicídio. Supondo que não suportará nem permitirá que o cônjuge ofereça a um terceiro o seu amor, pensam na morte do cônjuge. Supondo apenas que o cônjuge perdido é mais importante do que si próprio e que sua vida que já não vale nada, menos ainda valerá sem o cônjuge, pensam em suicídio. A separação dos que se amam dói mais do que a morte e homens e mulheres preferem lidar com a morte concreta do que lidar com a separação. Muitos sentimentos estão envolvidos na separação e o conjunto que eles formam produz dor maior, mais duradoura do que a da morte. A dor da separação tende a ser eterna, a separação quase sempre não produz o fim da dor do casamento infeliz. A separação conjugal dói mais do que a morte.

          Estas afirmações geralmente não são válidas para casais sem filhos ou casais que já estejam mantendo um relacionamento extra-conjugal fixo, mas mesmo nestes casos são válidas para o cônjuge que continua envolvido.

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