LEMBRANÇAS (podem fazer mal)

          É comum ouvirmos de pacientes em primeira consulta uma longa história antes de começar a falar dos motivos que motivaram o agendamento desta consulta. 

          Tenho o costume de começar o atendimento dando as boas-vindas aos pacientes, acho muito importante dizer-lhes o quanto sua presença no consultório me é agradável.  E poucas palavras são tão sinceras como estas.  Se não viessem ao meu consultório eu seria um profissional abandonado olhando solitário para o meu diploma.  Felizmente nestes mais de 30 anos de exercício profissional eu tenho sido presenteado com uma grande presença de pacientes.  Voltando… e logo após agradecer por sua presença acostumei-me a perguntar-lhes o motivo da consulta.  Costumam me responder com uma pergunta, como: “posso falar desde o início?” ou com uma observação: “não sei por onde começar”.

          Se querem começar a falar desde o início eu sempre autorizo.  Muitos começam a falar desde sua infância.  Como seria bom passar o dia inteiro com cada paciente.  Acho que vou implantar este tipo de atendimento… Ter que interromper, controlar o tempo, olhar discretamente o relógio… me faz muito mal.  Cada história seria um bom livro, a vida de cada um é sempre repleta de episódios que mesmo que tenham gerado sofrimentos causam interesse máximo, aguçam a curiosidade e produzem a maior vontade de ajudar.  Seria bom que todos fôssemos “cirurgiões psicólogos”.  Eu anestesiaria o paciente imediatamente e removeria todas lembranças que trazem sofrimento, todas as dores, todos os traumas, todas histórias,   todas neuroses… talvez um dia a ciência permitirá isto.

          Aquilo que trouxe o paciente à consulta hoje, iniciou-se há muito tempo.  Um simples fato ou alguns simples fatos lá ficaram, em algum lugar da história ou da memória ou da “alma” e não o abandonaram mais.  Estes fatos do passado podem ter sofrido mudanças, podem ter sido reinterpretados ou resignificados, mas em sua forma alterada ou original lá estão ainda hoje atuando, agindo contra a paz da pessoa.  Muitos fatos ou lembranças ou pensamentos ou ideias ou imaginações podem ter se somados a este(s) de tal jeito que o paciente que as vezes até chora ali em minha frente já não sabe mais dizer a que coisa cada lágrima pertence.

          Geralmente o início de tudo está muito longe, no tempo e na memória.  Muitos tem certeza da data em que tudo começou, mas no transcorrer das sessões de psicoterapia a memória traz lembranças anteriores à inicial e o paciente concorda que tudo começou antes, bem antes.  E continuando o processo terapêutico, surgem novas lembranças ainda anteriores e o início de tudo passa a ser ainda mais remoto do que pareceu.

          Porque o paciente pensava em um início e agora tem certeza de que começou antes?  Agora sabe que aquilo que parecia a causa não o é, mas sim algo anterior!

          Toda sua história, toda a sua coleção de emoções, fatos, imaginações, bons ou maus (não adequadamente resolvidos) estão lá, em algum lugar da memória, aparentemente esquecidos, mas lá estavam e agora vão sendo relembrados.

          Em uma palestra dada nos EUA em 1909 Freud disse assim:  “Senhoras e Senhores. Se me permitem uma generalização — inevitável numa exposição tão breve — podemos sintetizar os conhecimentos até agora adquiridos na seguinte fórmula: os histéricos (as pessoas normais) sofrem de reminiscências.”

Resultado de imagem para consultório Freud                Vamos dizer o mesmo que Freud em uma linguagem mais atual: Os sofrimentos psicológicos são as lembranças.  O paciente sofre de suas lembranças.  E o que fazer?  Estão lá em sua memória.  Muitos dizem de maneira clara que já fizeram de tudo para se esquecer, para resolver, para perdoar, para seguir com a vida em frente, mas de nada adiantou.  Muitos procuraram ajuda em suas religiões e também muitos outros trocaram de religião na esperança de não mais sofrerem.  Quase todos antes de irem ao psicólogo já foram em muitos médicos, em muitos clínicos e em muitos especialistas.  Raramente alguém vai diretamente ao psicólogo.

          Hoje, por norma da Agência Nacional de Saúde (ANS) ninguém vai diretamente ao psicólogo sendo todos obrigados a terem um encaminhamento de médico.

          O paciente tem uma história de sofrimento e também uma história de tratamentos.  Quer uma solução, quer a cura, quer a felicidade, quer ter paz. E não sabe de qual de suas dores deverá se livrar antes, “-do que me livro primeiro?”, é o que ele deseja dizer quando no início da primeira consulta como falamos no início deste texto, que ele não sabe por onde começar. Suas antigas memórias ocupam mais espaço em sua vida mental do que sua vida atual.

          O passado não quer passar, quer estar ali, extemporâneo, atormentando o presente.  Deverá ser colocado em seu devido lugar.  A pessoa deverá reorganizar-se.  Imaginem uma situação mais ou menos assim: morreu uma pessoa querida e não suportando tão grande perda, não conseguindo dar sequência à sua vida na ordem normal, não conseguindo realizar o enterro levando o querido morto ao cemitério e enterrá-lo, a pessoa deixa-o a cada dia pelo resto de sua vida dentro do caixão na sala.  Decorrerá daí uma série de desagradáveis eventos e situações.  Talvez o cheiro perturbe, talvez a sala fique inutilizável, talvez… E de qualquer forma a pessoa querida não retornará através desta decisão.  Imaginem quantas consequências!  Apesar de tudo, a pessoa não enterra seu morto.  A pessoa não consegue seguir em frente.  É necessário enterrar o morto.  O passado deverá ser passado.  Algumas perdas são inevitáveis, até necessárias.  Como parece tão simples compreender isto!  E como é tão difícil realizar isto. 

          O tratamento não é um método de deletar as memórias. Felizmente.  Pelo contrário, queremos recuperar todas as memórias e agora, estando em outra época e em outras condições, mais amadurecidos, mais experientes, encontrar a solução adequada para cada lembrança.

          O paciente tem tendência a abandonar o tratamento quando sente as primeiras melhoras.  Que pena! Vou escrever “que pena” 3 vezes mais: Que pena!  Que pena!  Que pena!  Nós estávamos apenas começando.  O paciente pensa que está de alta e eu penso que ele está abandonando o tratamento.  Que vontade grande de ligar para casa de cada um e perguntar se está bem, se continuou bem, se melhorou ainda mais…  Seria invasivo… melhor esperar e desejar que com aquela pequena melhora do início do tratamento, o (a) paciente esteja feliz.

          Aproveito para dizer a tantas pessoas que atendi nestes 30 anos, que espero e desejo que estejam felizes!

          Mas, na obrigação de orientar devo escrever a todos aqueles que hoje procuram ajuda psicológica, que prossigam até que seu profissional lhes dê ALTA.

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